sexta-feira, 11 de março de 2016

SINTHOMA, SUPEREU E A MARCA EM FREUD

por Luiz Gonzaga Sanseverino Junior EBP/AMP

Parto da indicação de meu caríssimo e saudoso amigo, Marcio Peter de Sousa Leite, sobre o “Bloco Mágico” em Freud: “um brinquedo para crianças onde um celofane é superposto a uma superfície onde se escreve e quando se levanta o celofane, automaticamente se apaga o que está escrito. No entanto, sempre fica uma marca. Freud diz que o inconsciente é assim: o recalque apaga as inscrições anteriores, mas tem sempre uma marca material que fica e que condiciona traços do que é escrito posteriormente”. 
O caso Emma (1) pode funcionar como exemplo, pois se trata de uma garota ainda fora da fase sexual que, ao visitar um merceeiro, sofre bolinações sem se dar conta do acontecido por falta de maturidade simbólica. Sempre fica um resto. Ao alcançar sua puberdade, lembra-se do ocorrido, que aí sim funciona com força suficiente para causar trauma, produz marca quando ela percebe o que realmente aconteceu. 
Em 1896, na Carta 52, Freud pensa o “mecanismo psíquico” pela via da formação da memória. O interessante é que ele diz que “a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; ela é registrada em diferentes espécies de indicações” (2). Cito Freud: “Gostaria de acentuar o fato de que os sucessivos registros representam a realização psíquica de épocas sucessivas da vida. Na fronteira entre estas épocas, deve ocorrer uma tradução do material psíquico”. (3) 
O que ele ensina é que, se a tradução não se faz, ocorrem as psiconeuroses, isto é, numa nova região ainda vigoram restos da anterior que obedecem às leis que comandavam aquele período vivido. Então, se acontece esta falha, o motivo do que é conhecido como repressão, Freud mostra que é sempre a produção de desprazer, o qual, gerando um distúrbio do pensamento, não permite o trabalho de tradução. A defesa patológica “somente ocorre contra um traço de memória de uma fase anterior, que ainda não foi traduzido”. (4)
 Penso isso como o que faz Marca no sujeito. 
Convém lembrar que o aparelho psíquico tem como função principal a tarefa de reduzir a excitação, causa de mal-estar ao sujeito. 
Retomo Freud na "Carta 52", onde ele pensa a noção de “fueros” (5), que indica quantidade de energia psíquica concentrada numa determinada região, incapaz de ser dissipada, e que formam as marcas, causa de desprazer. Isso pode ser pensado como “Fixierung” e aponta para o trabalho de análise via associação livre e sob o desejo do analista, que é o que fornecerá simbolização a este material, até o resto, em sua vertente literal, real, resto incapaz de ser simbolizado. 
Avanço em direção ao Último Ensino de Lacan. 
É muito interessante ver Lacan, a partir deste momento, pensar sua clínica de maneira radicalmente diferente. Aí já não existe mais o Outro e a direção do tratamento deve se orientar ao Real. Trata-se de visar às marcas no próprio falasser, isto é, o que restou das experiências traumáticas de sua história e que o condicionam, produzindo sua maneira singular de funcionar, seu sinthoma. 
Portanto, a que visa um analista quando interpreta? 
Visa ao significante/letra/marca de gozo. O ensinamento de Lacan de que existe um litoral entre o simbólico e o real, permite ver por que uma Psicanálise funciona. Ao se interpretar, via ato analítico, se visa à fonte de gozo do falasser. Desde Freud, sabemos que o importante não é o trauma, mas o que ficou registrado. O trauma em seu efeito marca o real. 
É visando à marca que se causa desejo no analisando de saber sobre seu sofrimento. Aí uma análise pode se iniciar. 
A marca é consequência, em lalíngua, do encontro traumático do significante com o corpo, gerando um acontecimento de corpo. 
O acontecimento de corpo deixa marca e condiciona o sujeito em sua vida e, às vezes, não é percebido. O trabalho de análise leva a uma redução disso que, no final, se encontra sob a forma de letra de gozo. O final de análise é lidar com isso que resta incurável em seu caso e ir em direção à vida, sabendo fazer aí com seu sinthoma. 
Portanto, o final de análise é alcançado a partir da construção de uma parceria entre o parletre e seu “sinthoma”, gerando como efeito a capacidade de saber fazer aí com o que resta incurável de seu caso, seu próprio gozo, resto de seu Supereu, efeito de suas marcas. Lanço mão da articulação de Lacan no seminário 23: “...se servir do pai com a condição de poder prescindir dele” (6), ou seja, poder encontrar e se servir da marca, com a condição de no final de uma análise, tomar uma certa distância disso e saber fazer aí. 
Assim, via ato analítico, via desejo do analista, acrescenta-se alegria, entusiasmo pela vida! 


Bibliografia
FREUD, Sigmund. A ProtosPseudos [Primeira Mentira] Histérica. In: Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas (ESB), v. 1 (1886-1899). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977, p. 464. (1)
 ______. Carta 52. In: Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas (ESB), v. 1 (1886-1899). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977,
 (2) p. 317. (3, 4, 5), p. 319.
______. Uma nota sobre o "Bloco Mágico". In: O ego e o id, Uma neurose demoníaca do século XVII e outros trabalhos. (ESB), v. 19 (1923-1925). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 283-290.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma, 1975-1976. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 131-132.(6)
LEITE, Márcio Peter de Souza. A teoria dos gozos em Lacan. Educação On-line. Publicado em 19 nov. 2001. Disponível em: . Acesso em: set. 2015.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Ex-coordenador do DSM, a 'bíblia' da psiquiatria, admite: "Transformamos problemas cotidianos em transtornos mentais"

Allen Frances (Nova York, 1942) dirigiu durante anos o Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM), documento que define e descreve as diferentes doenças mentais. Esse manual, considerado a bíblia dos psiquiatras, é revisado periodicamente para ser adaptado aos avanços do conhecimento científico. Frances dirigiu a equipe que redigiu o DSM IV, ao qual se seguiu uma quinta revisão que ampliou enormemente o número de transtornos patológicos. Em seu livro Saving Normal (inédito no Brasil), ele faz uma autocrítica e questiona o fato de a principal referência acadêmica da psiquiatria contribuir para a crescente medicalização da vida.
Pergunta. No livro, o senhor faz um mea culpa, mas é ainda mais duro com o trabalho de seus colegas do DSM V. Por quê?
Resposta. Fomos muito conservadores e só introduzimos [no DSM IV] dois dos 94 novos transtornos mentais sugeridos. Ao acabar, nos felicitamos, convencidos de que tínhamos feito um bom trabalho. Mas o DSM IV acabou sendo um dique frágil demais para frear o impulso agressivo e diabolicamente ardiloso das empresas farmacêuticas no sentido de introduzir novas entidades patológicas. Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução. O resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muito dano, especialmente na psiquiatria infantil. Agora, a ampliação de síndromes e patologias no DSM V vai transformar a atual inflação diagnóstica em hiperinflação.
P. Seremos todos considerados doentes mentais?
R. Algo assim. Há seis anos, encontrei amigos e colegas que tinham participado da última revisão e os vi tão entusiasmados que não pude senão recorrer à ironia: vocês ampliaram tanto a lista de patologias, eu disse a eles, que eu mesmo me reconheço em muitos desses transtornos. Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho uma demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então provavelmente tenho a síndrome do comedor compulsivo; e, como quando minha mulher morreu a tristeza durou mais de uma semana e ainda me dói, devo ter caído em uma depressão. É absurdo. Criamos um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais.
P. Com a colaboração da indústria farmacêutica...
R. É óbvio. Graças àqueles que lhes permitiram fazer publicidade de seus produtos, os laboratórios estão enganando o público, fazendo acreditar que os problemas se resolvem com comprimidos. Mas não é assim. Os fármacos são necessários e muito úteis em transtornos mentais severos e persistentes, que provocam uma grande incapacidade. Mas não ajudam nos problemas cotidianos, pelo contrário: o excesso de medicação causa mais danos que benefícios. Não existe tratamento mágico contra o mal-estar.
P. O que propõe para frear essa tendência?
R. Controlar melhor a indústria e educar de novo os médicos e a sociedade, que aceita de forma muito acrítica as facilidades oferecidas para se medicar, o que está provocando além do mais a aparição de um perigosíssimo mercado clandestino de fármacos psiquiátricos. Em meu país, 30% dos estudantes universitários e 10% dos do ensino médio compram fármacos no mercado ilegal. Há um tipo de narcótico que cria muita dependência e pode dar lugar a casos de overdose e morte. Atualmente, já há mais mortes por abuso de medicamentos do que por consumo de drogas.
P. Em 2009, um estudo realizado na Holanda concluiu que 34% das crianças entre 5 e 15 anos eram tratadas por hiperatividade e déficit de atenção. É crível que uma em cada três crianças seja hiperativa?
R. Claro que não. A incidência real está em torno de 2% a 3% da população infantil e, entretanto, 11% das crianças nos EUA estão diagnosticadas como tal e, no caso dos adolescentes homens, 20%, sendo que metade é tratada com fármacos. Outro dado surpreendente: entre as crianças em tratamento, mais de 10.000 têm menos de três anos! Isso é algo selvagem, desumano. Os melhores especialistas, aqueles que honestamente ajudaram a definir a patologia, estão horrorizados. Perdeu-se o controle.
P. E há tanta síndrome de Asperger como indicam as estatísticas sobre tratamentos psiquiátricos?
R. Esse foi um dos dois novos transtornos que incorporamos no DSM IV, e em pouco tempo o diagnóstico de autismo se triplicou. O mesmo ocorreu com a hiperatividade. Calculamos que, com os novos critérios, os diagnósticos aumentariam em 15%, mas houve uma mudança brusca a partir de 1997, quando os laboratórios lançaram no mercado fármacos novos e muito caros, e além disso puderam fazer publicidade. O diagnóstico se multiplicou por 40.
P. A influência dos laboratórios é evidente, mas um psiquiatra dificilmente prescreverá psicoestimulantes a uma criança sem pais angustiados que corram para o seu consultório, porque a professora disse que a criança não progride adequadamente, e eles temem que ela perca oportunidades de competir na vida. Até que ponto esses fatores culturais influenciam?
R. Sobre isto tenho três coisas a dizer. Primeiro, não há evidência em longo prazo de que a medicação contribua para melhorar os resultados escolares. Em curto prazo, pode acalmar a criança, inclusive ajudá-la a se concentrar melhor em suas tarefas. Mas em longo prazo esses benefícios não foram demonstrados. Segundo: estamos fazendo um experimento em grande escala com essas crianças, porque não sabemos que efeitos adversos esses fármacos podem ter com o passar do tempo. Assim como não nos ocorre receitar testosterona a uma criança para que renda mais no futebol, tampouco faz sentido tentar melhorar o rendimento escolar com fármacos. Terceiro: temos de aceitar que há diferenças entre as crianças e que nem todas cabem em um molde de normalidade que tornamos cada vez mais estreito. É muito importante que os pais protejam seus filhos, mas do excesso de medicação.
P. Na medicalização da vida, não influi também a cultura hedonista que busca o bem-estar a qualquer preço?
R. Os seres humanos são criaturas muito maleáveis. Sobrevivemos há milhões de anos graças a essa capacidade de confrontar a adversidade e nos sobrepor a ela. Agora mesmo, no Iraque ou na Síria, a vida pode ser um inferno. E entretanto as pessoas lutam para sobreviver. Se vivermos imersos em uma cultura que lança mão dos comprimidos diante de qualquer problema, vai se reduzir a nossa capacidade de confrontar o estresse e também a segurança em nós mesmos. Se esse comportamento se generalizar, a sociedade inteira se debilitará frente à adversidade. Além disso, quando tratamos um processo banal como se fosse uma enfermidade, diminuímos a dignidade de quem verdadeiramente a sofre.
P. E ser rotulado como alguém que sofre um transtorno mental não tem consequências também?
R. Muitas, e de fato a cada semana recebo emails de pais cujos filhos foram diagnosticados com um transtorno mental e estão desesperados por causa do preconceito que esse rótulo acarreta. É muito fácil fazer um diagnóstico errôneo, mas muito difícil reverter os danos que isso causa. Tanto no social como pelos efeitos adversos que o tratamento pode ter. Felizmente, está crescendo uma corrente crítica em relação a essas práticas. O próximo passo é conscientizar as pessoas de que remédio demais faz mal para a saúde.
P. Não vai ser fácil…
R. Certo, mas a mudança cultural é possível. Temos um exemplo magnífico: há 25 anos, nos EUA, 65% da população fumava. Agora, são menos de 20%. É um dos maiores avanços em saúde da história recente, e foi conseguido por uma mudança cultural. As fábricas de cigarro gastavam enormes somas de dinheiro para desinformar. O mesmo que ocorre agora com certos medicamentos psiquiátricos. Custou muito deslanchar as evidências científicas sobre o tabaco, mas, quando se conseguiu, a mudança foi muito rápida.
P. Nos últimos anos as autoridades sanitárias tomaram medidas para reduzir a pressão dos laboratórios sobre os médicos. Mas agora se deram conta de que podem influenciar o médico gerando demandas nos pacientes.
R. Há estudos que demonstram que, quando um paciente pede um medicamento, há 20 vezes mais possibilidades de ele ser prescrito do que se a decisão coubesse apenas ao médico. Na Austrália, alguns laboratórios exigiam pessoas de muito boa aparência para o cargo de visitador médico, porque haviam comprovado que gente bonita entrava com mais facilidade nos consultórios. A esse ponto chegamos. Agora temos de trabalhar para obter uma mudança de atitude nas pessoas.
P. Em que sentido?
R. Que em vez de ir ao médico em busca da pílula mágica para algo tenhamos uma atitude mais precavida. Que o normal seja que o paciente interrogue o médico cada vez que este receita algo. Perguntar por que prescreve, que benefícios traz, que efeitos adversos causará, se há outras alternativas. Se o paciente mostrar uma atitude resistente, é mais provável que os fármacos receitados a ele sejam justificados.
P. E também será preciso mudar hábitos.
R. Sim, e deixe-me lhe dizer um problema que observei. É preciso mudar os hábitos de sono! Vocês sofrem com uma grave falta de sono, e isso provoca ansiedade e irritabilidade. Jantar às 22h e ir dormir à meia-noite ou à 1h fazia sentido quando vocês faziam a sesta. O cérebro elimina toxinas à noite. Quem dorme pouco tem problemas, tanto físicos como psíquicos.

El País

sábado, 18 de maio de 2013

Sobre o filme dinamarquês: A caça (2012)

por Elida Biasoli





É a história de um homem, Lucas (Mads Mikkelsen), que acabara de se divorciar e disputa a guarda de seu filho com a ex. Tem como profissão um trabalho numa creche, um tipo de cuidador/instrutor. E que se diga de passagem, um trabalho que utiliza pouco das melhores características ditas masculinas. Um tom de desprezo é revelado por uma voz da sociedade em relação a isso, mas Lucas parece não se incomodar com a desaprovação.
            Embora esteja passando por uma fase de separação amorosa, o personagem parece não estar especialmente devastado com isso. Tem outros laços sociais na vida, como os amigos (sendo um em especial mais chegado) e justamente o trabalho que faz com as crianças. A grande trama começa quando Klara (Annika Wedderkopp), uma menina de seus 5 anos, filha de seu melhor amigo, declara seu amor por Lucas. Delicadamente, ele desencoraja Klara a investir nesse amor, encarando como uma paixonite infantil, sem fazer grandes alardes por isso. A menininha, frustrada com a rejeição, conta uma história fantasiosa para a coordenadora da creche, que por sua vez ouve o que quer. Uma ou duas palavras colocadas pela menina, viram um texto completo na boca da Sra. Coordenadora. E aí o mal-entendido (ou bem-entendido se olharmos pela perspectiva da fantasia que só diz da coordenadora) começa.
            “Não gosto dele”, “pipi que aponta para cima como uma vara” é colhido pelos ouvidos da coordenadora como: Lucas teve algum tipo de contato sexual com Klara. É completamente desconsiderado o fato de crianças terem instintos sexuais. Para o infortúnio de Lucas, um segundo homem (psicólogo?) vem entrevistar a menina, que não faz mais que balançar a cabeça enquanto o homem narra tudo o que sua imaginação lhe permite. Daí em diante a dimensão estratosférica que isso ganha só vai aumentando exponencialmente, a ponto dele ser completamente excluído de seus meios sociais. Nem seu melhor amigo acredita nele. Seu filho e o padrinho desse são as únicas pessoas que se mantiveram ao seu lado.
            O diretor do filme, Thomas Vinterberg, conduz magistralmente o que, em minha opinião, é o ponto crucial do filme: a reação enérgica da sociedade diante da possibilidade, por mais que remota, de uma relação entre um adulto e uma criança. A tensão aumentada a cada cena faz com que o espectador imagine a todo momento possíveis saídas para aquilo. Primeiro com a perda de seu emprego, depois com seus amigos íntimos virando a cara sem nem darem a oportunidade dele se expressar, com a morte-matada de sua cachorra, com os impedimentos que sofre até mesmo para fazer compras no mercado. Sua vida desmorona.
            Por mais que o juiz do direito o absolva, pois a história tem seus tons escancaradamente absurdos, a sociedade está cega. Por que tamanha reação? Freud em seu texto Totem e tabu (1913), realiza um estudo sobre povos ancestrais, supondo que, através de seus costumes, poderíamos ter uma ideia da vida mental desses que chamamos de selvagens e nela poderíamos ver um retrato de um estágio primitivo do nosso próprio desenvolvimento.
            O ponto desse texto que faz uma interlocução com o filme é quando se explana sobre as regras de evitação entre pessoas. São citadas as evitações que ocorrem: entre um homem e sua cunhada nos barongos de Delagoa Bay, na África do sul, em que se a encontra, cuidadosamente a evita, não come no mesmo prato que ela e dirige-lhe a palavra com constrangimento e tremor na voz ; entre os a-kambas, da África Oriental Inglesa, uma moça deve evitar o pai no período que vai da puberdade ao casamento, desviando seus caminhos nos casos de encontro ocasional; e a evitação mais difundida e rigorosa é a que impede as relações de um homem com sua sogra e pode ser verificada na Austrália, Melanésia, Polinésia e nas raças negras da África, onde traços de totemismo pode ser encontrado.
            A tese freudiana para explicar tais regras de evitação é devida ao fator incestuoso que reside nessas relações. Na situação de um homem com a sogra, descobre-se que esse geralmente escolheu a mãe como objeto de amor, e talvez a irmã também, antes de chegar à escolha final. Como há a proibição contra o incesto, é a sogra quem assume o lugar de sua mãe, pois apesar dele relutar contra isso, ele tem o impulso de recair sobre a escolha original. Assim, a explicação dessas evitações obrigatórias adotadas pelos povos primitivos é a que as encara como uma proteção a mais contra o possível incesto, sendo ela válida tanto para as evitações consanguíneas como tribais. A diferença é que nas relações de parentesco a possibilidade de incesto é imediata, e nos outros casos, “a possibilidade de incesto parece ser uma tentação na fantasia, mobilizada pela ação de laços vinculantes inconscientes” (FREUD, 1913). 
            Tomemos o caso do filme: a relação entre um homem e uma menina. Remontando a trajetória da vida psíquica de um sujeito de acordo com o viés psicanalítico, há a fase na qual a criança toma como objeto de amor seu progenitor. Mas por conta da barreira contra o incesto inventada pelos homens, seu amor é desviado da figura em que se centralizava para um objeto externo, isto é, o lugar ocupado por seu progenitor é assumido por outro objeto, sendo essa passagem “esquecida” (recalcada) pela mente consciente. É precisamente pelo fato do incidente retomar impulsos incestuosos em cada habitante, que advém tamanha repulsa pelo caso. Uma violenta reação guarda, em igual proporção, sua contrapartida. O que de mais intenso um homem da civilização quer proteger de si senão seus impulsos incestuosos?
            Claro, não se trata aqui em fazer apologia à pedofilia. O que grita em notas agudas no filme é a forma como esses habitantes lidam com seus próprios instintos sexuais. Desde a negação da sexualidade infantil, a invenção da relação entre Lucas e Klara, o tampão nos ouvidos dos cidadãos para qualquer defesa do homem, até a cena final do filme (um tiro a centímetros do rosto de Lucas, aviso de que a cidade não esqueceu), são indícios de como esses habitantes lidam com a própria sexualidade, colocando no mundo externo evitações de algo que se quer negligenciar no íntimo.

FREUD, S. Totem e tabu [1912-13]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago Editora.
 



sexta-feira, 26 de abril de 2013

Os traumas na cura analítica – Bons e maus encontros com o real

por Christiane Alberti, Marie-Hélène Brousse

 

Há uma teoria espontânea do trauma. O que não podia acontecer, aconteceu. Impensável! Inimaginável! Insuportável! Demais.

“Perco o controle” – Diante do impossível realizado o sujeito está perdido, não é mais o que ele era, nem para si nem para os outros. Nenhuma resposta vale. O sintoma explode.

A medicina, apoiada na ciência moderna, busca então uma solução – a pílula do dia seguinte, a preparação antecipada, a verbalização imediata. É a resposta pelo apagamento da memória – que tudo possa voltar a ser o que era antes e que os homens voltem a se ocupar dos seus afazeres tal como o imperativo do laço social exige. Não aconteceu porque não deveria ter acontecido. A questão surge: como viver depois do trauma sem o trauma?  Não se tira nenhuma lição do trauma.

Como o trauma faz parte da existência e não pode ser eliminado, a psicanálise opta por uma estratégia diferente, mais pragmática. Nenhuma alteração da memória, nenhum apagamento, nenhuma contra programação, nenhuma catarse, poderão eliminar o real. Mesmo supondo que tais soluções sejam possíveis, os danos colaterais seriam grandes demais e inaceitáveis do ponto do visto ético.

Então, o que propõe a psicanalise?  Ela considera que o trauma aconteceu, que ele modificou o sujeito e que ele se apresenta como avesso de um ato. E por isso que ela escolhe tirar do trauma um ensinamento. Desde a sua origem, a psicanálise, os analistas, Freud antes de todos, tiveram que reconhecer uma evidencia clínica: a realidade psíquica não coincide de modo algum com a realidade objetiva, seja ela fatual ou do discurso.

Mais ainda, a noção de trauma exige uma nova definição do fato e do evento que seja congruente com o sujeito do inconsciente. Lembremo-nos do celebre exemplo citado na Interpretação dos Sonhos revisto por Lacan.

Um pai perdeu seu filho, perda cruel, trauma no sentido comum. Exausto, ele pediu a uma pessoa familiar que se ocupasse de velar alguns instantes o corpo do filho amado. Mas, por sua vez, esse homem adormeceu ao lado da criança que, ela, dormia o seu sono derradeiro. De repente, um barulho: o fogo começou a queimar o corpo do filho amado. Esta é a realidade. Como é que o inconsciente responde? Por um pesadelo. A criança se aproxima e murmura “Pai, não vês que estou queimando?”. Onde está o trauma? A impossível voz do morto, eis o que verdadeiramente desperta o pai.
 
Uma imagem indelével, a erupção de um terror, a exacerbação de uma emoção, uma palavra eternamente inarticulável, são múltiplas as referencias às feridas que não se apagam, “perdas imaginarias no ponto mais cruel do objeto”. A expressão é de Lacan que celebra, na perda, a relação do trauma aos objetos, deixando o sujeito desnorteado, em um mundo que perdeu o sentido.
 
Aqui inicia-se o tratamento, no intervalo da fratura do sujeito, da perfuração da sua realidade. Sobre estes pontos de fixação, a maquina de produzir sentido se precipita e se esgota, confrontada ao que cegamente, o inconsciente real, não cessa de repetir.
 
Todo mundo delira, isto é, dá seu próprio sentido, porque todo mundo é traumatizado. Mas o delírio não liberta do trauma. Quando isso se repete, em quais condições um eu pode advir?
 
À universalização do delírio dos Uns-sozinhos, responde a generalização do trauma. O mal estar correlacionado ao sintoma cedeu seu lugar ao trauma relacionado à rejeição da marca, na medida em que o simbólico perde seu poder diante do real. A utopia dominante não é mais o recurso ao pai, mas ao risco zero com a docilidade geral que ele implica. Porém, não se leva ai em conta essa “coisa obscura” que está em nós. Cabe à psicanálise atribuir-lhe seu justo lugar, sempre singular, sempre contingente.
 

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O que é que se transmite, do pai e/ou da mãe, à criança?

* Por Daniel Roy, Lacan Cotidiano 275
 
O que é que se transmite, do pai e/ou da mãe, à criança? Esta questão encontra-se no centro dos posicionamentos atuais sobre a extensão da família « conjugal », e que já engloba diversos modos de «fazer família» - casamento, PACS, família dita « recomposta », casais homossexuais com filhos – e mesmo, possivelmente os casais homossexuais casados. A psicanálise, tão frequentemente desacreditada, é convocada neste ponto para carimbar a necessidade natural ou simbólica, e segundo, um modo de transmissão normatizado , para o bem-estar da criança : um papai + uma mamãe.
1- A transmissão: o que é irredutível?
A extensão atual de uma conjugalidade do tipo «familiar» sublinha a função «residual» da família no corpo social, indispensável a transmissão de uma constituição subjetiva.  O que é irredutível não é a transmissão da vida – pais ditos biológicos, o direito às origens, etc. – mas a relação com um desejo que não é anônimo.Isto não se opõe em nada com o fato de que os sujeitos tenham conhecimento das condições de sua vinda ao mundo, isto indica, apenas, que o vivo da questão da transmissão atravessa estas   diversas representações, necessariamente presentes.
2- As funções do pai e da mãe : à qual necessidade respondem?
Torna-se extenuante definir uma repartição de  « papéis » maternos e paternos : diversos corpos falantes fazem-se hoje os suportes dessas duas funções, fora de toda repartição «natural» (sexo) ou «cultural» (gênero). Portanto, o que são estas funções? A função paterna, indica apenas uma coisa: a necessidade da castração! É muito, já que trata-se de encarnar uma autoridade que não tem a não ser a garantia da palavra. A função materna, indica a necessidade de transmitir a marca de um interesse particularizado, ou seja, a presença de um desejo. Então, aqui estamos de volta ao ponto de partida (um papai + uma mamãe)? Não de todo: cada ser falante pode se fazer o suporte destas duas funções, isso esta aberto. A única certeza, é que o fará às suas próprias custas. Portanto, não é de forma alguma certo que esses nomeados «os pais » façam o trabalho: neste caso, a criança vai lidar com isso de forma diferente.
3- O que conta, é o que vem deles, isso não é porque sejam dois, de sexos diferentes. De qualquer modo, para cada um deles, a diferença dos sexos existe e os dividem, ou mesmo os afligem. O princípio permanece de não «combinar» demasiado os pais, quer eles sejam homo ou hétero: nos melhores dos casos, o que os une, ou os desune, é enigmático para a criança.
Mas o que uma criança pode, portanto, receber de um homem ou de uma mulher, enquanto que eles se reconhecem «pai» ou «mãe»? Para um pai, Lacan sublinhará que inevitavelmente, a criança cairá sobre o seu «pecado», sobre a sua falta: ele vai fazer bem, nomear com ardor, pois, nunca esgotará o gozo da língua...encarnado pela mãe, aquela que ensina a sua criança a representar !
Então, um pai sempre carente – irá transmitir a castração -, uma mãe que institui a mascarada – transmitindo o particular do seu desejo: extrai-se aqui da « conivência social » que continua a fixar a criança à mãe, fazendo-a «a sede eleita das interdições» (Ah, o incesto e o incestuoso que sempre ameaçam).
4- Há um mal-entendido !
O mal-entendido « que sua linhagem lhe transmitiu dando-lhe a vida », consiste no fato de que não há nada de natural, nem de sobrenatural, para fazer laço entre um pai, uma mãe e uma criança. Não tem nada de outro para ligar os membros da família – qualquer que seja a sua composição -, que este enigma evidenciado por Freud, que nenhum ser falante saberia « de onde vêm as crianças ». Assim, os seres falantes não estão em dívida, no que diz respeito, aos seus pais, porque eles lhe « deram a vida », mas porque eles lhes transmitiram esta falta, este defeito inerente a todo discurso, por não poder dar conta da aparição de corpo falante no real, que não seja, pelo mal-entendido da palavra.
Assim, de nenhuma forma, estas funções paternas e maternas, liberadas pela psicanálise, não podem fundar uma norma « familiar », e as diversas famílias, qualquer que seja suas constituições, podem ser, para o pequeno do homem que é ai acolhido, o lugar desta dupla transmissão :
1) que o habitat da linguagem com efeito é o lugar de uma separação - a castração -,
2) que há de inventar com a alíngua um saber-fazer com o gozo – com a mascarada -.
O fracasso é, portanto, aqui a única norma: os avatares da família moderna o ilustram com estrondo(s), conjugando separações e mascaradas nas configurações inéditas !

Parágrafo 1 e 2: Lacan J., « Nota sobre a criança », Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 369
Parágrafo 3: Lacan J., Seminário, Livro  XVII, O avesso da psicanálise, Rio de janeiro, Jorge Zahar, p. 89 e p. 129
Parágrafo  4 : Lacan J., « Le malentendu », Ornicar 22-23, printemps 1981, p. 12

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Os imbróglios do narcisismo


* texto de Éric Laurent, publicado em LACAN COTIDIANO 75
Tradução: Zelma Abdala Galesi
Revisão: Maria do Carmo Dias Batista

 

A miragem do narcisismo e a morte, desde a mitologia grega e a sua retomada freudiana, têm as mais estreitas relações. O recurso mais escondido do narcisismo é o de escolher seu caminho para a morte. Em seu escrito Uma criança é espancada, Freud pôde evocar a transformação do sadismo em “masoquismo passivo, novamente em um sentido narcisista”.
Em seu texto final sobre Moisés e o monoteísmo, ele generaliza os danos causados pelos traumatismos precoces e as feridas narcísicas que implicam. Há, portanto, algo de podre no reino do narcisismo, de onde a felicidade está excluída.
Lacan fez dessa tensão sem rémedio, da impossibilidade de reintegrar sua imagem, da impossibilidade que ela seja sem ferida, o recurso central do imaginário. É a chave da relação de cada um com sua imagem, e além dela, com toda representação possível de si como si mesmo.
O desaparecimento recente de Steve Jobs e o marketing implacável que trouxe ao mercado a biografia autorizada quinze dias após a sua morte, nos leva a refletir a céu aberto sobre os imbróglios do narcisismo. As exigências de Steve Jobs e sua ideia do gosto (taste) pelos pequenos detalhes, fizeram a originalidade dos produtos da Apple. Elas também tornaram mais de um colaborador emocionalmente louco de raiva. Podemos ver sua famosa declaração: “Sejam loucos, sejam insaciáveis”, é bem dele, que fazia regimes vegetarianos muito particulares, assim como a ideia de que o corpo deve seguir o espírito. A revista Fortune escreveu sobre ele “que é considerado como o maior egoísta do Silicon Valley”.
Em outubro de 2003, quando descobre que está sofrendo de uma forma de tumor pancreático relativamente rara, “um tumor endócrino nas Ilhotas de Langerhans”, ele recusa por nove meses a operação, com a qual lhe garantiram sucesso sobre o câncer. Para finalmente ceder às recomendações da elite médico-digital californiana. Torna-se, então, o melhor especialista sobre ele mesmo e sua doença, mantendo um rigoroso controle sobre cada decisão. Ele faz sequenciar todos os genes de seu tumor, assim como a totalidade de seu DNA, pelas equipes universitárias de Stanford, John Hopkins, Harvard e do MIT, em colaboração. Isto lhe custará 100.000 dólares e ele se tornará uma das vinte pessoas no mundo a ter seu DNA completamente sequenciado. Disso se deduz um tratamento personalizado que abre também a via para tratamentos inovadores. Ele confidenciou a seu biógrafo: “Ou eu serei o primeiro a sobreviver ao tal câncer ou um dos últimos a morrer dele”.
Esse espírito furiosamente original, solitário, singular, era pouco dotado para a paternidade. Ele tinha grande desejo de "pensar diferente", mas teve de repetir os traumas de infância com seu séquito de feridas narcísicas, como teria dito Freud. Ele que tinha sido abandonado por seus pais, que o haviam concebido fora do casamento aos 23 anos, concebeu também fora dos laços do casamento, aos 23 anos, uma criança e a abandonou por longos anos. Quando ele descobre que sua futura esposa, Laurence Powell, negociante em Goldman Sachs, estava grávida, ele pensa em voz alta em abandoná-la por outra. Quando sua filha quer ir para Harvard, ele se recusa a pagar a taxa de inscrição, e será um amigo da família que fará o adiantamento. Ela não o convidará a cerimônia de formatura. Maureen Dowd cita esse amigo, Andy Hertzfeld, que atribuiu a causa de sua "crueldade deliberada" para com os seus próximos, ao traumatismo do abandono.
Jacques Derrida, em uma entrevista de 1987, comentando sobre seu projeto autobiofotográfico, falou um pouco mais sobre a sua vontade de restaurar um "direito ao narcisismo." Não há o narcisismo e o não-narcisismo, há narcisismos mais ou menos compreensíveis, generosos, abertos, amplos, e aquilo que se chama o não-narcisismo é, em geral, apenas a economia de um narcisismo muito mais acolhedor, hospitaleiro e aberto à experiência do outro como outro. Acredito que sem um movimento de reapropriação narcísica, a relação com o outro seria absolutamente destruída, seria destruída com antecedência. (...) É preciso esboçar um movimento de reapropriação da imagem de si-mesmo para que o amor seja possível, por exemplo. O amor é narcisista. Portanto, há pequenos narcisismos, há grandes narcisismos, e no final, há a morte, que é o limite.
Da experiência – se houver uma – da própria morte, o narcisismo não abdica absolutamente”.
Jacques Derrida e Steve Jobs sonham, sem dúvida, em fazer de sua morte uma experiência. Seria um fantasma obsessivo? Deixemos a eles a última palavra lá em cima [ou sobre... (o assunto)]. Silêncio.


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A entrevista de Derrida citada por Éric Laurent encontra-se no site Derrida em castelhano.
"Não há o narcisismo" (autobiofotografias) - Jacques Derrida. Lançado em um programa da France-Culture por Didier Cahen, “O bom prazer de Jacques Derrida”, em 22 de março de 1986, e publicado sob o título “Entrevista com Jacques Derrida”, em Digraphe, n. 42, dezembro, 1987.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Notas sobre a cracolândia

por Contardo Calligaris.

Alguns leitores pediram que eu me posicionasse sobre a operação policial que tenta acabar com a cracolândia de São Paulo. Aqui vão três posicionamentos. 1) Sou contra violência e abusos repressivos (em tese, o governo também é).
2) Com ou sem internações não voluntárias, com ou sem a boa vontade de ONGs e igrejas, só uma ínfima parte dos drogados desistirá do crack e da errância pelas ruas da cidade.
3) E enfim, em tese, sou a favor do projeto de acabar com a cracolândia, mas não me orgulho disso, por duas razões: a primeira é que tenho carinho pelas sarjetas urbanas e ainda sinto falta da Times Square de Nova York nos anos 1970; a segunda pede uma explicação mais longa.
A operação cracolândia e o debate que a acompanha na imprensa ilustram as dificuldades do poder na modernidade. Num dos seus melhores seminários (o de 1975, "Os Anormais", Martins Fontes), Foucault mostra que esse poder oscila entre dois modelos: o da lepra e o da peste. Os diferentes e infratores podem ser retirados da circulação, fechados na prisão, na colônia agrícola, no antigo asilo. Esse é o modelo adotado para a lepra; ele segrega no lazareto.
Mas, às vezes, os diferentes e infratores, muito numerosos, espalham-se pelo tecido social de forma que sua segregação seria improvável. É o que acontecia no caso da peste. Os contaminados, então, não eram fechados em lazaretos afastados, mas a cidade era dividida em quadras, que eram vigiadas por, digamos, agentes sanitários: os doentes eram proibidos de deixar seu domicílio, e o governo administrava a vida (e a morte) deles dentro de suas próprias casas.
O modelo da peste tinha duas vantagens: ele permitia gerir intimamente a vida concreta das pessoas, e sua motivação aparente era nobre: "curá-las". Por isso, aliás, ele contaminou o modelo da lepra: quase não há mais detenção (modelo da lepra) que não cultive a ilusão de que ela será, para o detento, uma ocasião de redenção ou de cura (modelo da peste).
Hoje, podemos ser infratores e incômodos, mas raramente somos "ruins" e irrecuperáveis: seremos emendados pelos bons cuidados da sociedade, pois, de fato, éramos (ou melhor, estávamos) apenas "doentes". Será que este modelo nos deixa mais livres? Engano. Atrás da face indulgente do poder que se inspira no modelo da peste (o infrator estava doente, não fez por querer, está "desculpado"), esconde-se uma face especialmente tirânica: qualquer ato dissonante é reconhecido não como fruto de rebeldia ou originalidade, mas como efeito de uma patologia. Você é contra? Você é diferente? Pois bem, você está doente. Não há mais dissenso -só enfermos e loucos.
Voltemos à cracolândia. Talvez a toxicomania, uma vez instalada, seja uma espécie de doença. Mas a escolha inicial de se engajar na droga, será que é uma doença? Consideraremos doente (por alguma disfunção do córtex pré-frontal, por exemplo) qualquer sujeito que não se autorregule como a gente?
Anos atrás, jovem psicanalista, no norte da França, eu me ocupava de adolescentes "problemáticos" pelas drogas que consumiam, pela desistência escolar, por uma criminalidade difusa e pela violência contra os adultos que se opunham a suas vontades. Alguns eram filhos de excluídos, outros inventavam uma marginalidade própria, não herdada.
Um desses jovens escutou pacientemente enquanto eu tentava convencê-lo a frequentar as sessões de terapia e a aceitar a ajuda de uma assistente social, que facilitaria sua reinserção. Quando acabei, ele me disse, pausadamente, olho no olho: "O que lhe faz pensar que eu queira ter uma vida parecida com a sua?".
Conclusão. Podemos tentar curar os "noias", ou seja, esperar suprimi-los de um jeito mais radical do que apenas prendendo-os. De qualquer forma, agimos porque os achamos insalubres para nós.
E peço que ninguém pretenda me convencer que a dita cura, à diferença da segregação ou das porretadas, seria para o bem (ou para a dignidade) deles.
Detalhe. Originalmente, os modelos da lepra e da peste foram maneiras diferentes de lidar com o risco de um contágio. Quando tentamos "curar" vagabundos ou drogados talvez estejamos também reagindo ao risco de um contágio pelas margens sociais. Como assim?
Nunca estamos realmente convencidos de que temos razão de sermos bem pensantes e bem comportados. "Curar" à força os perdidos da cracolândia nos ajuda a evitar a sedução que sua "noite suja" exerce sobre nós.